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PORTUGAL: “O alargamento da base de apostadores foi feito à custa do jogo ilegal”

O alargamento da base de apostadores foi feito à custa do jogo ilegalEntrevista a Fernando Paes Afonso, vice-provedor da Santa Casa da Misericórdia.

A Santa Casa da Misericórdia tem uma importante intervenção em diversas áreas da sociedade. Jogos como o Euromilhões serão os que lhes dão mais visibilidade, mas a sua intervenção na ação social e no apoio aos mais desfavorecidos tem aumentado todos os anos. No combate ao jogo ilegal os valores recuperados de 2012 a 2014 atingiram os 500 milhões de euros.

A Santa Casa recebeu recentemente o exclusivo das apostas desportivas, que em Portugal conhecemos essencialmente pela internet, e também das apostas hípicas, que não têm muita tradição no país. De que forma pensam operacionalizar e rentabilizar estas novas áreas?

Nas apostas desportivas à quota de base territorial, que são aquelas que, como diz, se conhecia do online, estamos um pouco mais avançados em termos das mecânicas. É, no fundo, um tipo de aposta que já existe em quase todos os países da Europa há muitos anos. Nós aqui ficámos no Totobola e a verdade é que o Totobola foi perdendo adeptos. É um jogo que atrai poucos novos apostadores. O Totobola começou a perder interesse quando os jogos deixaram de ser predominantemente ao domingo. Quando os jogos passaram a ser à sexta, ao sábado, ao domingo, à segunda.

Perdeu-se aquele momento único em que o apostador sabia se tinha ganho ou perdido…

Exatamente. Perdeu-se esse momento, perderam-se muitos apostadores que ficavam zangados, porque tinha de se recorrer a mecanismos que estavam previstos no regulamento. Por exemplo, se havia antecipação tinha de se sortear um resultado. A quebra das receitas do Totobola começa nessa altura, 1992, 1993. Começa a cair fortemente. E era um jogo que tinha uma grande importância. As apostas desportivas à quota já não estão limitadas por esses condicionalismos. No fundo, posso apostar em várias coisas à volta de um único jogo de futebol ou em várias coisas em volta de um jogo de ténis.

Em vários sites da internet é possível apostar em quem vai ganhar a bola seguinte numa partida de ténis ou para que equipa vai ser o próximo pontapé de canto num jogo de futebol. Há alguma ligação entre esse modelo e o que a Santa Casa poderá implementar?

Não. Essas apostas online, o live betting, isso é outro mundo. O que foi concedido à Santa Casa da Misericórdia foi esse tipo de apostas desportivas à quota. Porquê à quota? Porque associado a cada resultado está uma probabilidade. Por exemplo, se o Porto joga com o Carcavelos, com todo o respeito pelo Carcavelos, a probabilidade de vitória do Porto é elevadíssima. Por isso, se ganhar a quota é 1,0001. Mas posso pôr uma quota de 500 ou de mil ou dez mil para a hipótese de o Carcavelos ganhar. Essa é a lógica da quota. Nós, na rede física, nos nossos mediadores, não vamos ter esse tipo de oferta de live betting nesta fase.

E essas apostas serão feitas no portal, como já acontece com o Euromilhões ou o Totoloto?

No portal não. Aí entra noutra área, em que também foi agora publicada a legislação, que é o regime jurídico do online, que foi liberalizado aos operadores que demonstrarem que reúnem as condições que estão previstas no decreto-lei. A Santa Casa da Misericórdia pode concorrer a uma licença, é uma decisão que tem de tomar. Mas esse é outro mundo. Até porque há apostas, sabemos já hoje, que são apostas menos desejáveis porque efetivamente há manipulação de resultados.

Estas apostas implicam contrapartidas para as modalidades?

Isso está previsto na lei. Do valor da aposta, 3, 5% serão distribuídos pelas entidades que o governo indicar. São tipicamente as entidades que têm utilidade pública: as federações desportivas, o Comité Olímpico…

E onde entram as apostas hípicas neste novo mundo?

De facto, a tradição que havia de corridas de cavalos em Portugal desapareceu. Havia uma tradição do século XIX, início do século XX, que desapareceu. Mas existem corridas de cavalos em dois ou três hipódromos. Esta foi uma matéria que estudámos bastante. Fomos ver o que se passa nos outros países. A nossa primeira intuição seria dizer que as apostas mútuas hípicas não teriam interesse nenhum. Mas pudemos verificar que não é bem assim. Na Suíça, onde não há de facto nenhuma tradição, foram há dez anos lançadas pela nossa congénere suíça as apostas mútuas de corridas de cavalos. São apostas sobre corridas realizadas noutros países, mas os suíços começaram a apostar, começaram a interessar-se por este novo estilo de jogo. Curiosamente, e nós estivemos lá várias vezes, os melhores mediadores destas apostas na Suíça são portugueses.

E esse interesse pela aposta tem retorno para os desportos hípicos?

Acaba por ter. Destes resultados que são apurados da exploração começa a nascer o interesse pela criação de cavalos, por toda a indústria que está ligada aos cavalos. E já temos alguma tradição a esse nível. Poderá vir a ser construído um hipódromo. Isso está no decreto-lei. Não é connosco. Nós só vamos explorar as apostas hípicas. Mas há um enorme potencial. Somos um país onde o turismo explodiu. Um turismo que não descobriu só Lisboa, que agora está muito na moda, mas também o Alentejo, o Douro. A procura de qualidade é satisfeita hoje um pouco por todo o país.

As raspadinhas são muito populares mas também geram polémica, com alguns especialistas a apontarem-lhe um potencial aditivo. Há algum trabalho feito no sentido de identificar o perfil desses apostadores?

Há. A Raspadinha, que é uma lotaria instantânea, é um conceito que foi inventado nos Estados Unidos e no Canadá e depois passou para o resto do mundo, nomeadamente para a Europa. Hoje, representa em qualquer estado norte-americano cerca de 80% das vendas. Aquelas lotarias tradicionais, a Clássica, a Popular, não existem nos Estados Unidos. E os chamados lotos de extração também foram perdendo o interesse. E isto porque este tipo de jogo social está muito ligado ao comportamento e às aspirações que as pessoas têm. Há 30, 40 anos, um americano achava graça a esperar uma semana para saber o resultado de um bilhete que tinha comprado. A vida tinha um ritmo completamente diferente.

Como é que os jogos da Santa Casa cresceram em tempo de crise?

De facto, normalmente estes jogos são procíclicos. Quando a economia cresce, o valor das apostas cresce. E quando entra em recessão é o contrário. Mas no nosso caso não foi assim..

Houve um contraciclo…

Mas houve um contraciclo pelo alargamento da base de apostadores. Temos não só dados quantitativos mas também sondagens, 2400 entrevistas presenciais, feitas para conhecer hábitos: jogam, não jogam, porque jogam. Tirámos uma “fotografia” no final de 2012 e depois tirámos outra no final de 2012. Ora, a nossa base de apostadores cresceu 1,3 milhões de portugueses, passou de 64% para 76% da população adulta. E no que diz respeito à lotaria instantânea, o alargamento da base foram 145%. Tornou-se transversal nas classes sociais, com grande penetração – contrariando outro mito urbano – nos segmentos A, B e C.

Portanto, não são só as classes baixas que estão a apostar. Também são…

Também são: o alargamento são todos. Foi transversal à classe social, nível etário. Porquê? Pelo tipo de produtos que colocámos. Por exemplo os produtos da família win for life, a ideia muito popular do Pé–de-Meia: a pessoa raspa e tem um salário entre os cinco anos, do mini Pé-de-Meia até ao mega Pé-de–Meia, que é um salário durante 12 anos, de três mil euros por mês. Esse tipo de conceito foi muito popular. Mas também gostava de dizer que o gasto médio por português baixou. De acordo com os nossos dados, o gasto médio é de 4,5 euros por semana.

Portanto, aquela situação do apostador de casino, que volta sempre para jogar mais uma ficha, não passou, no seu entender, para as raspadinhas?

Não. Isso tem um peso muito reduzido, não tem significância estatística. Muito do alargamento da base de apostadores foi feito à custa do jogo ilegal. Em Portugal há muito jogo ilegal. E nós percebemos junto das polícias, porque somos autoridade administrativa nessa matéria, que havia de facto muitas pessoas que queriam jogar pequenas quantias, por prémios relativamente pequenos. A nossa missão é essa: canalizar o desejo que as pessoas têm de jogar a dinheiro para esta oferta legal. Colaboramos com o SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências] no sentido de dar toda a informação de que dispomos para ajudar a tratar da questão da dependência do jogo. Mas onde é que ela é cientificamente comprovada? Nos jogos de casino.

Diz que o alargamento foi conseguido graças ao combate ao jogo ilegal. Quanto valia esse mercado e quanto conseguiram recuperar?

Havia estimativas que calculavam em cerca de mil milhões de euros [anuais] o valor desse mercado, mas não consigo dar com seriedade essa resposta. O que digo é isso explica o crescimento das vendas, porque as pessoas não tinham condições para gastar mais e há estudos que provam que as pessoas reduziram o gasto.

Para nos situarmos, falamos de valores recuperados de que ordem? Cem milhões de euros anuais?

O nosso crescimento entre 2012 e 2014 foi de cerca de 500 milhões de euros…

Fonte: Diário de Notícias

hi

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